O que karatekas podem tirar de bom da série Cobra Kai

[Vídeo e versão podcast no final do post]

Você já deve ter percebido que nos últimos tempos tem se falado bastante sobre a série Cobra Kai, que trata eventos 30 anos depois da trilogia clássica dos filmes Karate Kid. Eu comecei a assistir em 2018, quando saiu na plataforma que na época era YouTube Red. Na época a recepção foi boa, mas desde que as duas primeiras temporadas foram lançadas na Netflix, na metade de 2020, o alcance foi muito maior e a repercussão foi grande. Agora com a terceira temporada, lançada em janeiro de 2021, a gente vê isso acontecer de novo.

Com o sucesso da série, as pessoas naturalmente começaram a se interessar mais por Karate e a procurar escolas de Karate, principalmente numa faixa etária mais baixa, de crianças e adolescentes. Segundo notícia divulgada pelo site Omelete, as buscas Karate cresceram 75% em comparação entre janeiro de 2021 e dezembro do ano passado, 2020. Janeiro deste ano se tornou o mês com maior interesse por Karate desde 2014! Isso é muito significativo. A série trouxe novos olhos para nossa arte marcial.

Apesar da gente não estar na melhor época para encher os dojo e fazer uma divulgação maciça do Karate, eu acredito que é importante recebermos, na medida do possível, essas pessoas que têm vindo com interesse e que querem começar a treinar conosco, orientando da melhor forma para que eles entendam o que é o verdadeiro Karate. O que pode ser absorvido de positivo dos filmes e da série e o que não faz parte da realidade de um dojo, o que não faz parte do treino do dia a dia.

Então, eu acredito que há uma reflexão importante para professores de Karate neste momento, não só para orientar as pessoas que estão vindo de fora agora, mas até mesmo para os alunos que têm assistido a série Cobra Kai e tem gostado do conteúdo: mostrar a essência do Karate para essas pessoas e o que elas podem tirar de positivo do treino do Karate.

Na minha opinião, a melhor forma de fazer isso não é atrelando diretamente o que você faz no dojo com que é mostrado na série, porque é uma coisa é uma ficção, uma obra de entretenimento, outra coisa é o Karate de verdade, que exige uma certa seriedade na forma como a gente vai transmitir isso para as outras pessoas.

Você pode, obviamente, aproveitar a onda de popularidade da série Cobra Kai e de outras obras da mídia com relação às artes marciais e ao Karate, mas é preciso um pouquinho de equilíbrio para não misturar as coisas e não chegar falando que você está ensinando Cobra Kai porque não é isso que acontece. Cobra Kai é uma obra de ficção. O fato é que o Karate de verdade é muito mais amplo e muito mais fascinante do que é mostrado na série.

Alguns pontos que eu acho que valem a reflexão:

1. O Karate mostrado em Karate Kid e na série Cobra Kai de forma alguma se propõem a ser um retrato fiel do Karate. Eles são a visão romantizada e até um pouco infantilizada do que é a dinâmica de um dojo e de um treino de Karate. Eles colocam exercícios mirabolantes, um aluno com menos de um ano de treino para competir como um faixa-preta em um torneio… e a gente sabe que a realidade não é bem assim. E tudo bem, porque a proposta da série não é essa.

A proposta da série é se inspirar no Karate para criar uma narrativa que seja entretenimento para as pessoas. Então, obviamente não é uma série ou filme focado em mostrar o Karate de verdade. Existem obras um pouquinho mais próximas da dinâmica do Karate, documentários, mas não é o caso de Cobra Kai.

A série simplifica muitos os métodos que a gente vê no dojo, como o treino de kihon, que é a repetição de movimentos e o kata, elemento fundamental do Karate que nem de longe tem a atenção que merece. A gente vê um pouco do kata Seienchin/Seyunchin no filme do Karate Kid 3 e também na série Cobra Kai, mas são trechos pequenos e não tão fiéis às mecânicas do kata.

Os elementos são utilizados para trazer uma visão romântica que está sendo feito, mostrar um Karate mais zen no caso do Karate do Senhor Miyagi. A escola Cobra Kai, por sua vez, ilustra a ideia de entrar na linha, fazer uma coisa mais militar, que até em certos pontos lembra um pouquinho a disciplina do dojo e como a gente se alinha para fazer o kihon e os exercícios básicos, mas de uma forma bastante caricata. Devemos deixar claro, principalmente para os mais jovens, que o Karate da série é uma coisa, uma visão para entretenimento, e outra coisa é o Karate de verdade que exige esforço, comprometimento e estudo.

Agora, mesmo assim, sendo uma série de ficção e tendo coisas bastante caricatas com relação ao Karate, não quer dizer que a gente não possa pegar coisas boas e refletir sobre isso no dojo ou quando está conversando com alguém sobre Karate.

2. Cobra Kai e Karate Kid absorvem bem são alguns aspectos filosóficos do Karate. Um deles é com relação a equilíbrio, que é muito falado inclusive no primeiro filme. Não é apenas sobre fazer uma base correta, de ter equilíbrio numa técnica, mas o equilíbrio mental para você conseguir lidar com as situações da melhor forma possível, sempre seguindo o caminho mais razoável, o caminho mais ponderado, sabendo a hora de recuar e saber a hora de avançar.

Quando a gente pensa nos extremos, inclusive é uma coisa que o próprio Daniel San tem dificuldade de assimilar, você acaba ou pecando pela omissão ou pecando pelo excesso de atitude, pela agressividade. A escola Cobra Kai via muito pelo lado da agressividade: “ataque primeiro, bata forte, sem misericórdia”… Mas por não ter nenhuma nuance por trás disso, não ter nenhum equilíbrio no que eles fazem, por ser muito literal, eles acabam na verdade se tornando pessoas escrotas, porque fazem mal para as outras e também para eles mesmos.

Por outro lado, quando você precisa tomar uma atitude com relação algum problema e você fica muito na defensiva, você pode agravar uma situação exatamente porque não houve essa atitude assertiva. Então você vê que nesse caso do equilíbrio o caminho do meio é muito importante.

Você também pode ver um pouco dessa dicotomia no filme Kuro-Obi, Faixa-Preta, em que a gente acompanha dois praticantes do Karate, herdeiros mesmo mestre. Um é completamente agressivo e impulsivo e o outro é completamente omisso, só pensa em defender ou nem pensa em usar o Karate dele quando é necessário e com isso ele também prejudica as pessoas à volta dele.

3. Outra lição mostrada tanto no Karate Kid quando no Cobra Kai é sobre superar os medos e encarar os problemas. No Karate Kid 3 há uma cena bem icônica, que inclusive depois é relembrada na série Cobra Kai, em que o Senhor Miyagi fala para o Daniel Larusso, quando ele está apanhando no torneio, que ele pode perder para o adversário, mas não deve perder para o medo.

Vencer às vezes é muito mais do que ganhar um troféu, vencer uma discussão ou impor seu ponto de vista e é muito mais sobre seguir em frente apesar das adversidades. A gente pode ter inseguranças e nervosismo para fazer um exame, para apresentar um kata ou para fazer um kumite com um companheiro: esses sentimentos que a gente tem durante essas situações também são aprendizado para a vida.

O exame de faixa, eu costumo ser falar para os alunos do nosso do dojo, não é só questão de avaliar o conhecimento do aluno, mas também é pra que o aluno tenha essa situação de nervosismo, diferente de treino do dia a dia, para que ele consiga superar e mostrar o que ele sabe mostrar o que aprendeu durante todo o tempo de treino apesar dessas dificuldades, apesar de aquele friozinho na barriga. Esse é mais um ponto que se a gente refletir e traçar paralelos com dojo veremos que é um ensinamento muito válido de trazer da série para vida real.

4. Outra coisa também um pouquinho relacionada, falada determinado momento da série, na terceira temporada, é que defesa toma várias formas. Essa é uma questão que tem tudo a ver não só com a parte técnica como também com a parte filosófica do Karate: às vezes, defesa é um ponto de vista.

Às vezes a melhor forma de você se defender é atacando o primeiro, assim como é no lema do Cobra Kai. Inclusive, existe um debate em torno de um dos lemas mais conhecidos do Karate, que é o Karate ni sente nashi (空手に先手無し), “não existe primeiro ataque no Karate”. Um dos mestres mais conhecidos do começo da população do Karate, Choki Motobu, inclusive chegou a dizer, na verdade Karate é atitude, que Karate é SENTE.

Do ponto de vista filosófico, você vai fazer de todo o possível para não precisar usar violência, agressividade, em alguma situação de conflito, mas, a partir do momento que você se sente ameaçado, que você vê que não há alternativa, aí você vai aplicar o que você precisar, com a força que você precisar, para que a situação seja resolvida o mais rapidamente possível. Isso também tem a ver com determinação e equilíbrio, porque o karateka não pode vacilar: ele tem que fazer o melhor que tiver alcance dele para que o pior não aconteça.

5. Mais um fator interessante pode ser resgatado da série como uma lição para nossa vida é que o Johnny e o Daniel ainda estão muito apegados às coisas do passado, a coisas que eram feitas a 30 ou 40 anos atrás. Por não conseguirem superar isso, eles vivem numa situação que acaba está prejudicando os próprios alunos deles.

A gente não pode ter uma mentalidade anacrônica com relação ao que a gente pratica do Karate. Logicamente, Karate é uma arte passada por gerações e a gente precisa entender os ensinamentos do Karate para que a gente possa aplicar em nosso próprio treino. Mas, ao mesmo tempo, nada impede a gente de analisar isso de uma forma crítica para entender qual é a melhor forma de aplicar esses ensinamentos do passado, se houve alguma distorção nesse meio do caminho e o que pode ser melhorado também, por que não.

Então é importante entender o que você está fazendo para conseguir aplicar isso. Como na série, seu Karate tem que se adaptar aos tempos sem perder a raiz, mas trazendo o que é de bom, que vai ajudar você e que vai ajudar os seus alunos a viverem melhor.

6. A série Cobra Kai também ilustra é que o Karate pode te fazer uma pessoa melhor. Johnny Lawrence, o protagonista da série, que era um vilão do primeiro Karate Kid, começa a história numa situação bem ruim da vida dele. À medida que ele retoma o Karate e começa a ensinar outras pessoas, principalmente o Miguel (que ele pega como um pupilo da mesma forma como o sr. Miyagi aceitou o Daniel San e começa a passar o Karate para que ele tenha mais confiança e equilíbrio na vida), o próprio Johnny percebe que ele precisa melhorar como pessoa e que o Karate que ele transmite também precisa evoluir para que as pessoas que ele ensina sejam pessoas melhores também.

É claro que na vida real é diferente, mas a ideia de que o Karate até pode te ajudar a ser uma pessoa melhor com certeza permanece. O Karate não garante que você automaticamente vai melhorar, mas você pode tirar o ensinamentos do Karate e aplicar isso de uma forma que te ajude em vários aspectos para ser uma pessoa mais confiante, que sabe se impor na hora correta, que sabe a importância da disciplina e da dedicação para atingir seus objetivos, que sabe ter respeito pelas outras pessoas e que sabe a hora de ouvir.

Você consegue tirar tudo isso mantendo um treino constante do Karate, mas você precisa na sua cabeça, com consciência, estar disposto absorver os ensinamentos e aplicá-los na sua vida. Karate é uma ferramenta: ele não vai resolver os seus problemas, o que você tira do Karate pode te ajudar tanto a melhorar como pessoa, quanto resolver alguns assuntos.

7. Para finalizar, as pessoas falando do Karate é muito bom. Ter crescido tanto a popularidade do Karate por conta da série Cobra Kai é algo que não tem como ver de uma forma negativa. Aí vai a questão se você está tirando o melhor disso ou não. Se você está sabendo separar a ficção da realidade e usaras reflexões que são trazidas pela série e pelos filmes para que isso seja uma ferramenta de aprendizado para o seu dojo e para você mesmo.

Obras que retratem o Karate e as artes marciais orientais são sempre muito bem-vindas. A gente tem vários filmes de kung-fu e samurai, mas não temos tanta coisa assim sobre Karate. Há alguns filmes bons, mas são poucos, então séries como Cobra Kai podem ser até um estopim para que esse tipo de obra seja mais é corrente e também para que as pessoas tenham mais interesse em entender o que é esse Karate, pesquisar e descobrir o Karate que existe na verdade é muito amplo, que tem várias abordagens diferentes, e que tem uma história muito fascinante muito rica que nenhuma série conseguiu possível explorar ainda.

8. Não importa se um aluno chegou a o Karate por meio de uma série, por um desenho ou por alguma outra mídia. O importante é o Karate que você mostra no seu do dojo. Se você está conseguindo transmitir o que é o Karate de fato e transmitir também que existem várias interpretações.

Se você consegue passar para ele que o Karate não é uma arte misteriosa, mas um legado cultural muito importante do povo de Okinawa o antigo Reino de Ryukyu, que tinha uma convergência cultural e comercial muito grande principalmente com sul da China e que, somadas práticas locais mais as práticas externas, que vieram por conta desses intercâmbios comerciais e culturais, resultou-se uma arte única para autodefesa tanto do corpo quanto da mente.

Karate de verdade é muito mais fascinante que qualquer série de TV ou filme, mas poder ver obras relacionadas ao Karate e às artes marciais é sempre uma coisa muito prazerosa e muito bem-vinda, que sempre abre caminho para muita reflexão. Então, eu vejo com olhos muito positivos o lançamento de Cobra Kai.

E espero que venham outras séries relacionadas ao Karate e a história de mestres. Vamos aproveitar o melhor que a gente pode nesse momento positivo do Karate e também se divertir assistindo a série e revendo os filmes, que com certeza são uma experiência é muito bacana. Os filmes são clássicos exatamente por terem uma relevância cultural e histórica grande.