Recentemente, o site da revista Aventuras na História publicou o artigo O karatê chegou ao Brasil antes de ser difundido no Japão?, explorando alguns aspectos históricos da nossa arte e sua evolução até chegar ao nosso País. É sempre bom ver o Karate sendo abordado em veículos de maior alcance, mas tratar da sinuosa história dessa arte não é uma tarefa fácil e, por conta disso, tudo que chega a nós precisa ser lido com senso crítico. No caso desse texto em específico, há algumas imprecisões históricas e conceituais que achei relevante comentar.
Um exemplo é certo trecho chamar Tode (唐手) de “Karate Chinês”. Diferentemente do que é dito no texto, não se trata de uma arte marcial vinda diretamente da China: Tode é simplesmente o nome antigo do Karate, arte marcial de Okinawa/Ryukyu. O Tode foi muito influenciado pelas artes da região de Fujian, na China, mas o povo de Ryukyu ressignificou o que aprendeu com os chineses e estabeleceu sua arte marcial única. Chamar de Karate Chinês não faz sentido, até porque “Karate” é uma outra leitura possível para os kanji do “Tode”.
A confusão provável é porque Tode de fato significa “mão chinesa”, para destacar justamente a influência dos estilos chineses. Quando o nome foi mudado para Karate, o que houve foi uma mudança do kanji To/Kara (唐) para o Kara/Sora (空), que significa vazio ou céu. “Mão chinesa” (唐手) se tornou então “mão vazia” (空手) ressaltando o aspecto filosófico da arte e servindo como uma forma do Japão continental (rival da China) a aceitar mais facilmente a arte vinda de Okinawa.
Mas o ponto principal do artigo da Aventuras na História, que deve ser visto com cuidado, é dizer que o Karate/Tode começou a ser ensinado no Brasil na primeira leva da imigração japonesa, em 1908. O texto diz:
Kasato-Maru atracou no Porto de Santos, 40% de seus 781 passageiros eram da Província de Okinawa, lugar onde, desde 1902, o Karatê era ministrado como parte da grade de educação física nas escolas primárias.
(…)
Nas colônias, os japoneses ensinaram a Arte da Mão Vazia, nos termos prescritos de Okinawa, aos jovens japoneses e aos poucos brasileiros que se interessavam. A prática do Karate-Dô, até então, era desenvolvida informalmente no Brasil.
Não é algo simples de afirmar categoricamente. O fato de imigrantes de Okinawa terem chegado nessa época e do Karate/Tode já ter sido introduzido nas escolas torna o raciocínio válido e com sentido, mas o autor não apresenta nenhum registro que comprove isso. Quando não temos qualquer evidência mais concreta, entramos no campo da especulação, não do fato histórico. Não seria o primeiro relato que ouço, inclusive, de imigrantes japoneses que praticavam alguma arte marcial em sua terra natal e, ao vir para o Brasil, tinham como assunto mais urgente e imediato o trabalho.
Isto posto, um adendo: se alguém tiver qualquer indício do Karate sendo praticado ou ensinado pelos primeiros imigrantes japoneses, seria algo incrível. Eu gostaria de ser informado e escrever a respeito.
É fato que o Karate chegou aqui por meio da imigração japonesa, mas o que temos documentado não é de 1908: Recentemente, um registro surgiu como o primeiro da arte no País, em 1919, em um jornal que descreve apresentação em Campo Grande/MS (leia mais aqui)¹. Fora essa matéria, as informações concretas, até o momento, sobre treino aberto e trabalho de divulgação da arte são todas da década de 50. Entre os pioneiros mais conhecidos estão Yoshihide Shinzato, que começou a ensinar informalmente em sua colônia e fazer demonstrações a partir de 1954; Mitsuke Harada, que começou a ensinar em 1956; e Shikan Akamine, que começou a ensinar em 1958 e estabeleceu formalmente a primeira escola de Karate do País, a Associação Brasileira de Karate (ABK), em 1959.² Além desses mais conhecidos, há um ainda mais antigo.
O primeiro registro conhecido e incontestável de um mestre de Karate no Brasil é de um uchinanchu, Motoku Yabiku. Há vídeo de uma apresentação dos alunos dele no Ginásio do Pacaembu, em 1951, conforme pode ser lido neste post que fiz anteriormente. A data do vídeo o coloca como o primeiro professor de Karate conhecido no Brasil. Infelizmente ele faleceu logo após essa apresentação, conforme relato feito por Yamauchi Seihin:
(Yabiku Mōtoku) trabalhou irracionalmente duro para apresentar o Karate e morreu de fadiga. Seus discípulos construíram um túmulo maravilhoso, onde eu esculpi uma música.
Enquanto eu estava viajando pelo mundo, quem estava mais ansioso para me ver era Yabiku no Brasil, mas escrever para seu túmulo sem vê-lo é um estranho destino. Sua esposa Kame correu para dizer “Este é o desejo do meu marido”. Em uma vila japonesa em São Paulo, passei a noite compondo o poema a ser gravado no monumento.
A música é uma arma que leva à paz.
Bombas atômicas podem ser explodidas com isso.
Motoku Yabiku foi uma figura importante para a comunidade okinawana no Brasil e em 1922 e fundou um bairro em Lins, no interior de São Paulo, conforme é dito no e-book A Saga da Imigração Japonesa em Lins, de Manabu Mabe. A informação é complementada por uma postagem feita pelo karateka Alaumir Mainardes, que escreveu:
Sensei Motoku Yabiku aluno do Sensei Kentsu Yabu (1866-1937).
Provável ano de nascimento: 1886
Provável ano de falecimento: 1951
Imigrou para o Brasil em 1918.
Natural de Sashiki (Sashiki-cho) que era uma cidade localizada no distrito de Shimajiri, Okinawa, Japão.
Sensei Motoku Yabiku veio ao Brasil numa condição mais privilegiada do que os outros imigrantes pois ele e a esposa (Kame Yabiku) eram professores em Okinawa.
Sensei Motoku Yabiku fundou um bairro Yabiku em Lins, São Paulo. A colônia chamava-se “Yabiku Shokuminti”.
Sensei Motoku Yabiku ganhou do presidente Washington Luís escritura de um terreno na “futura capital” do país ainda a ser construída (Brasília), mas nunca foi atrás de seus direitos.
A escritura foi noticiada em uma reportagem no jornal Diário do Grande ABC.
Indo um pouco mais longe, graças a dados compartilhados em um grupo de discussão sobre Artes Marciais de Ryukyu,³ eu consegui encontrar o cadastro de imigrante de Motoku Yabiku no site do Arquivo do Estado de São Paulo. Ali temos a informação (fornecida primeiro por um bisneto de Yabiku) de que Motoku Yabiku desembarcou em 15/06/1917, aos 31 anos, do navio Wakasa Maru.
Se formos considerar o que temos documentado, então (1) o ensino do Karate já era feito em 1951, por Motoku Yabiku; e (2) pode-se considerar que o desembarque de Yabiku no Brasil, em 1917, marca a chegada do primeiro mestre de Karate da qual se tem registro. Logo, 1917 é a data mais antiga que temos sobre a chegada do Karate no Brasil. Agora, entrando novamente no campo da especulação, Yabiku no mínimo manteve uma prática constante do Karate, uma vez que pôde ensiná-lo mais de 30 anos após sua chegada.
Até pouco tempo, quase não se falava de Yabiku como o primeiro professor de Karate no Brasil. Isso mostra como a tecnologia nos ajuda e descobrir novos fatos e preencher lacunas. Muito provavelmente há mais sobre a história do Karate no Brasil a se descobrir, afinal, temos uma das maiores comunidades de uchinanchu do mundo, o que certamente é um privilégio para os amantes do Karate e de sua terra natal, além de nos dar muito para estudar.
*Foto da capa: Alunos de Motoku Yabiku
¹ Atualizo em 9/8/2020
² Além desses mencionados, há também Jiro Takaesu, que teria começado a ensinar o sensei Benedito Nelson em 1954, conforme relato que consta no blog do sensei Fernando Portela.
³ Atualizado em 1/6/2020