TRANSCRIÇÃO DO VÍDEO
Você já ouviu falar de kakedameshi, kake-kumite ou kakidī?
Esses são conceitos históricos do Karate de Okinawa, que nos ajudam a entender dinâmicas originais e pouco conhecidas da nossa arte. Neste vídeo vou explicar um pouco sobre esses conceitos.
Primeiro, não teria como eu abordar neste vídeo as diversas referências que eu tenho sobre o assunto e alguns aspectos relacionados. Por isso, escrevi um artigo que explica tudo de uma forma bem mais completa.
Te convido a ler e comentar o que achou. O link vai estar na descrição deste vídeo.
Entre as referências eu usei para escrever, estão mestres como Kanken Toyama, Chōki Motobu, Gichin Funakoshi, Shōshin Nagamine, Kenwa Mabuni e Kenei Mabuni, entre outros, além de pesquisadores como Andreas Quast, Naoki Motobu e Patrick McCarthy.
Pois bem. Como eu adiantei no começo do vídeo kakidī 掛手, kake-kumite 掛け組 e kakedameshi 掛け試し são termos relacionados ao tipo original do Karate de Okinawa remetendo à época que a arte era chamada de Tōdī 唐手 e mesmo antes disso.
Começando por kakidī. Essa é a pronúncia na língua nativa de Okinawa, o uchināguchi. Em japonês é kakete ou kakede. Significa “mãos penduradas” ou “mãos enganchadas”. Esse termo na verdade tem a ver com um conceito das artes do sul da China, chamado ponte.
A ponte ou kakete é basicamente o contato que você faz com o oponente, seja atacando ou defendendo, para desenvolver suas aplicações. Ou seja, kakidī é um conceito técnico e relacionado à luta em curta distância, porque requer que você esteja em contato com o seu adversário.
Algumas pessoas usam kakidī como um sinônimo para o kumite com esse conceito, o que não é necessariamente um problema, mas o conceito que eu vou explicar é mais adequado: É o kake-kumite, que significa o kumite ou luta que é feito a partir do kake, do kakidī.
Você deve conhecer aquela famosa foto dos mestres Chōjun Miyagi e Jūhatsu Kyoda, muito jovens, em uma posição de braços cruzados. Essa posição é um kakidī e é exatamente a postura em que se começa o kake-kumite e outras referências também comprovam isso.
No estilo Tō’on-ryū, que foi criado por Jūhatsu Kyoda, essa prática ainda existe. Um dos sucessores de Kyoda Sensei, Shigekazu Kanzaki, disse o seguinte sobre isso:
“Em vez de sparring pré-arranjado [yakusoku-kumite], Juko Sensei e eu praticávamos sparring livre [jiyū-kumite]. Esse método envolvia colocar seu pulso direito no pulso direito do seu parceiro enquanto ambos assumiriam uma base dianteira à direita. O punho esquerdo era mantido na cintura. Kyoda Sensei ficava entre nós, segurava nossos punhos e nós esperávamos a nossa chance. (…) Em outras palavras, Tou’on-ryu é um estilo que favorece luta de perto e uso de técnicas em uma distância extremamente curta.”
Então a gente já definiu duas coisas: kakidī é um conceito de curta distância e kake-kumite é a aplicação desse conceito no kumite livre.
E quanto ao kakedameshi? Essa é a versão de desafio do kake-kumite. Kakedameshi (ou kakidamishi) significa teste por kake. É basicamente uma forma de medir forças e habilidade usando a dinâmica do kakidī.
Muitos mestres do passado se envolveram com o kakedameshi, que era popular no distrito vermelho de Naha, mas não só lá. Um dos mais populares foi Choki Motobu. Mas há também histórias envolvendo também Sōkon Matsumura, Kentsū Yabu, Chōtoku Kyan, Tsuyoshi Chitose e outros.
Kenei Mabuni, filho do criador do Shitō-ryū Kenwa Mabuni, escreveu o seguinte em um livro:
“Jovens que praticavam karate faziam exercícios de luta real chamados kakedameshi. Os alunos que queriam se submeter a esse tipo de luta tinham que se candidatar e pedir que testemunhas comparecessem. Uma das testemunhas atuaria como árbitro. Eles se encontrariam em um lugar apropriado nas ruas, cercado por seus companheiros. Naquela época não havia postes de luz.
Então, quando o sol tivesse se posto, os adversários teriam que lutar à luz das lanternas que os espectadores seguravam. O árbitro cessava a luta de acordo com a situação dando conselhos como: ‘Você deve praticar isso e aquilo um pouco mais…’ Por fim, as habilidades técnicas eram discutidas entre os companheiros.
Meu pai também era frequentemente convidado para essas lutas-teste e para servir de árbitro para seus amigos. Mas os kakedameshi não eram competições como as de hoje. Era uma luta séria, real e ‘tudo permitido’, mas um oponente nunca era derrotado inexoravelmente. Ambos os oponentes serviriam um ao outro para estudar seus próprios pontos fracos e fortes. Não era ‘competir um contra o outro’, mas ‘cooperar um com o outro’.”
Também há outras referências que confirmam essa descrição de Kenei Mabuni, de que o kakedameshi era um desafio livre, mas controlado, em que as pessoas podiam testar suas técnicas e perceber o que podiam melhorar.
Sendo o Karate uma arte criada para defesa pessoal, que precisava funcionar, fazia sentido que eles tivessem meios de testar e explorar isso na prática, não é mesmo? Por isso o Karate foi se refinando com o tempo, porque o que era praticado era testado e comprovado. Será que a gente faz isso hoje em dia?
O historiador japonês Kōzō Kaku, diz o seguinte: “a tradição de kakedemashi (combates para testar/melhorar a habilidade) é uma parte vital do karate transmitida em Okinawa e ajuda a melhorar suas habilidades práticas de luta.”
Como eu já disse, todos esses conceitos têm a ver com as artes chinesas, que influenciaram muito o desenvolvimento do Karate. Para ter uma ideia, há registros de lutas chinesas (kumite mesmo) praticadas em Okinawa, ou Reino de Ryūkyū na época, no século 18, 300 anos atrás.
Então, naturalmente esses conceitos todos que eu falei de kakidī e kake-kumite estão presentes também em diversos estilos chineses. Alguns inclusive iniciam a luta exatamente com a mesma posição de braços cruzados do karate antigo. Entre essas escolas estão Praying Mantis, Hung Gar, Tai Chi e os estilos derivados do Garça Branca, que tem uma ligação mais direta com o Karate e que, inclusive, é um estilo registrado no livro Bubishi.
Outro estilo chinês que também apresenta esses conceitos de luta é o Wing Chun, que desenvolve isso por exercícios como Chi Sau, Lap Sau e Fon Sau.
Como dá para perceber, é um tipo de kumite muito diferente do que a gente imagina hoje em dia quando pensa em Karate, que é uma coisa mais de longa distância, sem tantas técnicas de contato constante… O que aconteceu?
A resposta é muito complexa para explorar aqui, mas tem a ver com fatores culturais, sociais e políticos ligados à modernização do Karate. A prática do kake-kumite, do kakedameshi e da luta em curta distância foi se perdendo porque não era ensinada para todo mundo. Quando o karate começou a ser ensinado a um público mais amplo, nas escolas, o foco passou a ser mais a educação física do que defesa pessoal, então era mais focado em exercícios como o treino solo dos kata e treinos simples de yakusoku-kumite.
É bem documentado que Funakoshi não ensinava kumite livre nas aulas que ele dava nas universidades de Tóquio, então os alunos acabaram criando e aperfeiçoando seu próprio kumite dentro de um contexto muito diferente daquele de décadas atrás.
Se a gente somar isso à Segunda Guerra Mundial, que dizimou um terço da população de Okinawa e deixou a ilha em ruínas, fica mais fácil entender porque certas práticas se tornaram raras ou tiveram que ser reconstruídas.
Mas ainda há algumas poucas escolas atualmente praticam abertamente este tipo de kumite a partir do kakidī. Uma delas é o Tō’on-ryū (que eu já mencionei) e o Motobu-ryū, escola que reúne os ensinamentos de Chōki Motobu, mas mesmo em escolas de Okinawa onde o kake-kumite ou kakedameshi não é praticado na integra, os conceitos ainda sobreviveram e são aplicados. Inclusive um vestígio disso é a forma como algumas escolas praticam o kakie, desenvolvendo para o um tipo de luta. O kakie também parte do kakidī e tem origem nas artes chinesas, apesar não ser exatamente a mesma coisa que o kake-kumite.
Também há organizações no Japão e em outros países que reconstruíram esse kumite, seja chamando de kake-kumite ou kakedameshi e incorporaram nos seus treinos. No Brasil, por exemplo, há o Muidokan Karate Kenkyukai, do qual eu faço parte. Também tem gente de muito conteúdo como nos Estado Unidos o Noah Legel e o Daniel Marino.
Por ter tido contato com o kake-kumite e kakedameshi, pra mim ficou claro que um ótimo jeito de testar as técnicas e estudar as aplicações de kata. Serve para pesquisar o bunkai, testar as técnicas e continuar se desenvolvendo tecnicamente. É uma prática excelente.
Eu escrevi o artigo que eu mencionei no começo do vídeo para poder compartilhar com as pessoas registros sobre o kakidī, kake-kumite e kakedameshi e ajudar a preservar um legado histórico do Karate.
Nossa arte é muito mais ampla do que a gente imagina. Hoje em dia temos várias facetas, como esporte, preservação da saúde e também defesa pessoal. A gente deve seguir praticando e estudando com a mente aberta, sem achar que sabe tudo, mas ao mesmo tempo compartilhando, colaborando com o que sabe, e estando aberto a perspectivas pouco conhecidas também. Assim o Karate só se fortalece.
Então, mais uma vez eu convido você a ler o artigo que eu escrevi para ter mais detalhes. Eu também vou gostar de receber comentários ou mesmo que você compartilhe outras informações que talvez eu não tenha. Com essa colaboração e espírito aberto com certeza vamos cada vez mais longe.
Disto isso. Obrigado por ter assistido este vídeo e até a próxima.