Em nossa jornada no Karate, para fazer o melhor em nossa prática, é indispensável conhecer nossas raízes. Parte disso passa por estudar os relatos e as perspectivas dos grandes patriarcas da arte. Algumas são mais fáceis de encontrar, como os textos de Gichin Funakoshi, enquanto outras são menos acessíveis, por não terem sido traduzidas ou por serem menos conhecidas, entre outros fatores. Todo esforço para que essas obras alcancem o maior número de pessoas é importante: são peças do grande quebra-cabeça que forma a nossa arte, afinal.
Um dos trabalhos de tradução relevantes que vale destacar é o contido no livro Karate-Do, por Chojun Miyagi, uma coletânea de textos relacionados ao fundador do Goju-Ryu, traduzidos e organizados pelos karateka lusitanos Humberto Nuno de Oliveira e Eduardo Cunha Lopes. É português de Portugal, evidentemente, mas esse fato não chega a ser um problema para a compreensão dos brasileiros. Humberto Nuno é historiador e professor universitário, além de ter outra obra (que ainda não li) sobre a história do Goju-Ryu. Em Karate-Do, por Chojun Miyagi, além dos textos traduzidos, há muitas notas que esclarecem, contextualizam e complementam o material.
O livro traz os textos de Chojun Miyagi “Um Esboço Histórico de Karate-Do” e “Esboço Histórico do Karate-Do, Arte Marcial de Ryukyu”, de 1934 e 1936, respectivamente. Ambos na verdade são basicamente versões diferentes do mesmo texto, sendo que a primeira foi escrita por Miyagi logo antes de sua visita ao Havaí para promover o Karate e fornecer uma explicação sobre a história, filosofia e aplicações. Já a segunda, foi preparada para uma palestra e demonstração em Osaka. Antes de conhecer o livro, eu cheguei a fazer minha própria tradução do texto de 1936, que pode ser conferida neste link.
Outro texto de Miyagi presente no livro é o “Inspirar e Expirar de Acordo com o ‘Go’ e ‘Ju’: Um Ensaio Diversificado Sobre o Karate” publicado em 1942 em “Bunka Okinawa”. Nesse texto ele traz reflexões sobre a busca por compreensão do Karate, instruções sobre a execução do kata Sanchin e comentários a respeito da importância de treinar os kata fundamentais para que eles sejam o alicerce para os avançados. Também fiz uma tradução desse texto, em 2019.
Em complemento aos textos de Chojun Miyagi, há também a tradução da famosa reunião de mestres de Okinawa, em 1936, pra discutir os rumos da arte. Muitos citam essa reunião como o ponto em que foi definido que o nome “Karate-Do” (caminho das mãos vazias) seria adotado no lugar de Toude (mão chinesa). Minha impressão lendo a conversa é que essa questão não foi bem um consenso, como é geralmente dado a entender quando a reunião é mencionada (“nós não tomaremos imediatamente uma decisão,” disse Miyagi em determinado momento). De qualquer forma, é um episódio rico em informações.
Por último, há o texto “Memórias do Meu Mestre, Chojun Miyagi”, escrito por Genkai Nakaima, um dos alunos mais antigo de Miyagi, publicado na revista “Aoi Yumi” em 1978. É um relato muito interessante em que Nakaima descreve como eram os treinos na casa do próprio Miyagi, além de citar algumas falas e ensinamentos transmitidos pelos mestres.
Em um trecho específico, Nakaima relata que Miyagi dizia haver muito no Karate que ele ainda não entendia e que não faziam sentido e que, por isso, eles deveriam aproveitar para visitar os grandes mestres ainda vivos e fazer muitas perguntas. Essa sinceridade e inquietação de Miyagi é algo admirável, pois é muito comum os professores de Karate se colocarem como detentores de todas as respostas, mesmo que elas sejam sem muita reflexão ou que no fundo não façam sentido. Em longo prazo, onde isso leva? Se um grande mestre como Miyagi não sabia de tudo, o que dizer de nós? A atitude dele de seguir pesquisando certamente é algo para tomarmos como um exemplo para a vida. Infelizmente, não temos mais como conversar com esses grandes mestres do passado, mas podemos estudar os escritos que ficaram e seus ensinamentos. E ainda podemos seguir fazendo “muitas perguntas”.
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