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Quando a arte marcial então conhecida como Toude foi desenvolvida no antigo reino de Ryukyu, localizado ao sul do Japão, havia um objetivo bem definido: ser um método de defesa pessoal civil eficiente. Para esse processo ter êxito, a arte foi lapidada através de gerações, sendo refinada por meio da inteligência coletiva até resultar nos sofisticados registros técnicos e táticos conhecidos como kata. Esse propósito primordial foi descrito em depoimentos de grandes mestres como Anko Itosu (“uma forma de evitar ferimentos usando as mãos e os pés caso o indivíduo seja confrontado por um bandido ou encrenqueiro”) ou Chojun Miyagi (“antigamente, a política de ensino do Karate enfatizava as técnicas de autodefesa”), entre outros.
O Toude não era uma arte criada primariamente para educação física (você pode simplesmente criar exercícios funcionais específicos para este propósito), uma filosofia “zen” bonita (apesar de desde sempre envolver uma certa ética e princípios) ou mesmo esporte. Estes elementos físicos e filosóficos vieram como um subproduto do Toude e, de certa forma, enriqueceram a arte.
O tempo passou, Ryukyu foi anexado pelo Japão e se tornou a prefeitura de Okinawa. O mundo se modificou, as formas de violência mudaram em escala e formatos também. O Toude, antes treinado com poucos alunos, a portas fechadas, foi adaptado, introduzido nas escolas de Okinawa e divulgado pelo mundo afora. O antigo Toude foi ressignificado para o mundo moderno e passou contemplar um aspecto mais global: o desenvolvimento do ser humano. Assim o Toude Jutsu se tornou o Karate-Do moderno, incorporando rituais, desenvolvendo ensinamentos e se tornando uma forma de Budo, arte moderna com filosofia inspirada no antigo código dos samurais.
O Karate-Do ainda carrega as técnicas e ensinamentos próprios para a defesa pessoal em confrontos físicos. Mas essa atualização para a modernidade reforçou aspectos da arte como uma ferramenta para crescimento pessoal, manutenção da saúde e do equilíbrio mental. Como definiu Chojun Miyagi, então Karate é “a arte que exercitamos a mente e o corpo para promover a saúde na vida cotidiana, mas em caso de emergência é a arte da autodefesa sem nenhuma arma.”
De certa forma, o propósito de promover a saúde da mente e do corpo acaba por ser nada menos que outro meio de defesa pessoal, de preservação da vida: precisamos defender não só nosso corpo dos ferimentos, mas também das possibilidade de doenças que podem prejudicar um organismo enfraquecido e sedentário. “No passado, os mestres de Karate aproveitaram longas vidas. Karate auxilia no desenvolvimento dos ossos e músculos. Ajuda na digestão e também na circulação,” disse Itosu. O nosso corpo precisa de movimento para compensar o tempo que passamos parados, sentados ou em postura ruim.
Nossa mente também precisa de defesa pessoal. Para conseguirmos fazer melhor e enfrentar os obstáculos na nossa frente, precisamos cultivar uma atitude assertiva, aprendermos a manter a calma, a ter perspicácia, pensamento rápido, perseverança e resiliência. Tudo isso você encontra em um treino de Karate. Você também percebe que a atividade física durante um treino te deixa mais leve, mais disposto, te ajuda a abstrair os problemas e ter foco. Evoluir no Karate ainda ajuda a conhecer a si mesmo e explorar do seu potencial.
Nós precisamos desses aspectos mais “internos” de defesa pessoal do Karate em nosso cotidiano, mas especialmente em período adversos. É aí que precisamos de um cuidado extra para manter nossa saúde em dia e nossa mente equilibrada. Por isso, é triste quando as pessoas param de treinar Karate na primeira dificuldade: parece que elas só se mexeram de forma robótica por um tempo, não aprenderam e nem entenderam o Karate e seus benefícios.
Nosso corpo e nossa mente precisam de manutenção. A grande vantagem do Karate, neste sentido, é que a partir de um certo nível de conhecimento você consegue praticar em qualquer lugar, no seu tempo livre. Você consegue estabelecer uma rotina de treinos de acordo com a sua disponibilidade, quando estiver distante do dojo, e aplicar por conta própria a “defesa pessoal” da sua saúde. Isso é confirmado por Gichin Funakoshi, o pai do Karate moderno: “Quase nenhuma outra forma de exercício (…) pode ser realizada a qualquer hora ou lugar tão facilmente quanto o Karate. (…) Nenhuma área específica, equipamento ou mesmo parceiro é necessário, pois pode ser realizado em um jardim, sala de estar, corredor, a qualquer momento ou lugar em que se sinta vontade de praticar.” Evidentemente você precisa de um professor para aprender o Karate, mas valerá pouco se você não assimilar o que foi ensinado e não usar isso em seu favor.
Karate tem muitas abordagens e interpretações, mas certamente revela seu melhor lado quando é uma arte em favor da vida. Uma prática que auxilia as pessoas viverem de forma mais plena, mais ativa e com saúde, a consolidarem valores importante, além de se protegerem e se prevenirem de vários perigos, tanto internos quanto externos. Não é, evidentemente, a única atividade da qual é possível retirar esses benefícios, mas (e eu sei que sou suspeito para dizer) é uma das mais ricas e fascinantes. É uma arte para cultivar em momentos de paz e em momentos turbulentos.
Não deixe de treinar e estudar o Karate. A arte não está em um espaço físico, mas onde houver um praticante dedicado e disposto a fazer o seu melhor.
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