No tempo em que vivemos, com altos índices de violência e um sentimento geral de insegurança por parte das pessoas, não é incomum ver escolas e instrutores de Karate promovendo cursos e palestras sobre defesa pessoal. E realmente, ter as ferramentas para se defender e escapar de situações de perigo é algo necessário e recomendável para qualquer pessoa. Mas será que esses cursos, em sua maioria, cumprem seu propósito de abordar a defesa pessoal de forma eficiente? Será que nós, artistas marciais, entendemos plenamente o conceito e a complexidade do que é defesa pessoal, a ponto de transmitir isso de forma objetiva e eficaz? Minha impressão é que uma reflexão muito séria ainda precisa ser feita sobre o tema e que os próprios instrutores devem fazer uma autocrítica sobre o que estão transmitindo sob o rótulo de defesa pessoal.
Apesar das artes marciais tradicionais terem sido criadas originalmente para aplicação militar ou mesmo defesa pessoal civil, a expansão e sistematização de seu ensino e a introdução das modalidades esportivas em muitos casos diluíram o lado da defesa mais prática, dando mais ênfase para aspectos filosóficos e físicos, com abordagens menos “perigosas”, que propiciam um tipo de treino em um contexto que nada tem a ver com defesa para situações reais. E essas situações por si só exigem mais que a técnica, então já comprometida.
Defesa pessoal é praticamente um estudo à parte e exige muito critério e senso crítico para ser ensinado de forma realista. Arrisco dizer que a grande maioria dos dojos usa o termo de forma inadequada e mesmo irresponsável se consideram que o treino regular de kihon, kata e kumite esportivo por si só supre os requisitos mais amplos da defesa pessoal, que se trata muito mais que a parte física, de saber dar um soco, envolvendo fatores psicológicos e contextuais.
Entre os pontos que podemos levantar quando falamos de defesa pessoal, vale citar:
> Capacidade de identificar e evitar situações de perigo;
> Capacidade de se desvencilhar verbalmente de situações de perigo;
> Habilidade mental de agir sob pressão em situações de risco;
> Em situação de perigo, entender a dinâmica de um confronto não consensual, que é muito diferente do embate com um amigo karateka;
> Estudar estatísticas dos hábitos mais comuns de violência física, para poder desenvolver treinos e exercícios de acordo com agressões mais prováveis (tenho impressão que seiken chudan oi-zuki em zenkutsu dachi não é uma delas);
> Entender que situações de agressão real são caóticas, difíceis de prever e envolvem variáveis muitas vezes não consideradas nos treinos, como uma arma que o agressor possa ter escondida, ter que defender outra pessoa ou lidar com múltiplos agressores;
> Aspectos legais e consequências de um eventual confronto físico. Não é porque você agiu em de legítima defesa que está livre de implicações jurídicas e penais, que envolvem desde testemunhas à forma como você lidou ou como reagiu à situação.
Então, como você considera esses poucos fatores acima, que são apenas alguns, quando vende suas aulas como defesa pessoal? Ou não considera de forma nenhuma? Se considera, como aborda esses temas para desenvolver habilidades e capacidade de discernimento em seus alunos? Para mim pelo menos, não parece o tipo de coisa que se aprende em uma manhã de domingo ou caminhando para cima e para baixo no dojo socando o ar. É preciso ir bem mais longe.
Não me entendam errado: o Karate é uma arte que pode ser muito eficiente na defesa pessoal, mas primeiro devemos entender o propósito e as diferentes abordagens que estamos treinando. Em um treino regular de Karate, desenvolvemos equilíbrio, consciência corporal, concentração, reflexos, força e resiliência, além de podermos treinar técnicas de combate em um ambiente controlado e seguro. Para que tudo isso caminhe em direção à defesa pessoal, parece fundamental ter senso crítico e desenvolver aulas de acordo, aproveitando os alicerces que o Karate proporciona e escalonando os conceitos abordados até que o tema de defesa pessoal possa ser abordado de forma consistente. Isso levando em consideração que o instrutor entende a real natureza do Karate e das mecânicas e conceitos transmitidos, que vão muito além de socos e chutes.
Essencialmente, o Karate e as técnicas codificadas nos kata lidam com um campo bastante específico da defesa pessoal, que é o aspecto físico, de quando não há outra opção além do confronto para defender a própria vida. E tudo bem seguir com os treinos focados neste sentido. Mas é preciso ter consciência e deixar claro que essa é apenas uma parcela dentro de algo mais amplo. O aluno não pode sair com a impressão de que a defesa pessoal se resume à “luta”, pois isso pode levar a julgamentos equivocados.
Outro ponto é que, para entender a violência física real, é necessário ter alguma referência sólida a este respeito. Se a única referência que você tem são filmes de ação e competições de artes marciais, que têm regras e restrições, você não pode dizer que tem alguma base de referência ou realidade para sua prática de defesa pessoal. Esse não é o tipo de coisa que pode ser apenas suposto. Logicamente, isso não quer dizer que o karateka deve sair procurando confusão na rua para ganhar experiência, mas parece razoável ouvir quem passa por este tipo de situação (policiais, profissionais de segurança e afins), ler a respeito, analisar dados sobre crimes e agressões, assistir vídeos e usar os meios disponíveis para entender da melhor forma possível o tema, com um referencial com pé na realidade.
A realidade nem sempre é bonita, mas precisa ser encarada de forma objetiva. Quando falamos em defesa pessoal, falamos em estar preparados para evitar ou lidar com situações potencialmente de vida ou morte. Logo, o modo como orientamos alunos ou treinamos a nós mesmos para esse tipo de situação é algo que precisa ser encarado com o máximo de responsabilidade, cuidado e critério. Do contrário, algo transmitido de forma incorreta pode causar uma falsa percepção e custar a vida de alguém. E vale lembrar que a ideia geral é diminuir esse risco.
Ter propósitos objetivos e claros no treino ajuda a desfazer falsas percepções e construir mentalidade adequada de contexto do que está sendo praticado. Treinos diferentes podem ser predominantemente para, entre outras coisas, desenvolver fundamentos e mecânicas; para o condicionamento e saúde física; para desenvolver habilidades para competições por pontos; para lidar com situações de combate consensual full contact, como o MMA; e para lidar com situações de confronto físico não consensual (agressões). Todas as abordagens são válidas e atendem a propósitos específicos.
Isso não quer dizer que um atleta de Karate, que não treina com foco na defesa pessoal, e sim na performance esportiva, não possa se defender com sucesso de uma situação de perigo ou que um único treino não possa proporcionar habilidades úteis em mais de um contexto. Atletas de artes marciais e praticantes graduados com certeza têm uma habilidade e repertório técnico acima de pessoas que não praticam nenhum tipo de luta. Mas existe um limite do quanto um treino específico para um propósito pode ser transportado para outro cenário.
Para melhor visualizar o dito acima, imagine colocar um atleta que só treinou semicontato para lutar em um octógono, sem nenhuma preparação prévia para essa situação, contra um lutador experiente nesse ambiente. Não é difícil imaginar o que aconteceria, pois as abordagens e os propósitos da preparação que ambos vivenciaram são completamente diferentes. Nem melhor e nem pior, simplesmente com objetivos e funções distintas.
Com isso tudo, eu não quero dizer que tenho expertise acima dos demais ou desmerecer os sensei que estão há anos cultivando nossa nobre arte. Apenas acredito que há uma reflexão que não pode deixar de ser feita para que possamos progredir com sinceridade, explorando toda a eficiência que o Karate pode nos oferecer. E essa é uma discussão que já foi feita antes e que tem sido feita hoje por gente muito mais capacitada do que eu. É um exercício que eu mesmo procuro fazer e que sei que será de longo prazo. Mas convido a todos que têm a mente aberta e prezam pela valorização e pelo estudo do Karate para que também reflitam e participem dessa conversa, por nós mesmos e pelos nossos alunos.
Sobre o assunto e relacionados, segue algum material recomendado:
Andreas Quast – The Invention of Karate [artigo]
Iain Abernethy – Reinventing Violence [podcast]
Iain Abernethy – Multiple Assailants: An Inconvenient Truth [vídeo]
Iain Abernethy – Consensual Violence (Fighting) vs. Non-Consensual Violence (Self-Defense) [vídeo]
Rory Miller – Meditations on Violence: A Comparison of Martial Arts Training & Real World Violence [livro]
Samir Berardo – As origens, a confusão e a revolução do karate [artigo]