Registro do Karate [Tode] no Brasil em 1919

As diversas colaborações de pessoas de interessadas em se aprofundar de preservar a história das artes marciais, somadas, geram resultados fascinantes e expandem o conhecimento. Se tratando do Karate no Brasil, isso também é verdade: novos detalhes sobre a prática no País surgem por meio dessas colaborações. Recentemente, repercuti sobre os primórdios do Karate no Brasil falando um pouco sobre os primeiros mestres, entre eles Motoku Yabiku, que por conta de um registro em vídeo de 1951 é o primeiro professor conhecido de Karate no Brasil. Yabiku chegou ao País em 1917, se estabelecendo no Estado de São Paulo, mas não se tem registro (até o presente momento) dele ter praticado abertamente ou ensinado Karate nessa época.

Eis que, ao falar no Facebook sobre as informações que tenho sobre o Karate no Brasil, algumas pessoas compartilharam comigo alguns detalhes para expandir essa história. Entre eles, uma descoberta fascinante. Em 18 de julho de 2020, durante uma live no canal da Confederação Brasileira de Kendo, Luiz Kobayashi Sensei*, pesquisador e praticante das artes da espada japonesa, apresentou um registro histórico raríssimo:

A edição de 14 de novembro de 1919 do extinto jornal Brasil Jihô, da colônia japonesa no Brasil, fala sobre uma apresentação de artes marciais no Brasil, em 31 outubro do mesmo ano, na cidade de Campo Grande/MS… E entre elas estava o Karate com seu nome antigo, 唐手! Esses kanji (mão chinesa) pode ser lido como Tode ou Karate, mas é diferente da escrita moderna 空手 (Karate = “mãos vazias”).

Ou seja, Karate praticado fora de Okinawa/Japão, em 1919, antes da modernização da arte e da criação dos estilos praticados atualmente.

Não há informações sobre quem realizou essa apresentação, mas esse registro por si só de grande relevância, pois é o primeiro que se tem notícia do Karate/Tode sendo efetivamente praticado no Brasil. Também provavelmente um dos primeiros registros de Karate/Tode sendo praticado fora de Okinawa e do território japonês. Evidentemente, okinawanos imigraram para outros lugares mesmo antes do Brasil, como por exemplo para o Havaí, onde aparentemente há relatos anteriores da prática do Karate/Tode (se alguém tiver outro, ficaria feliz em ser informado).

Conversando com Kobayashi Sensei, ele comentou comigo que nessa apresentação descrita no jornal houve também uma demonstração de “bastão de ferro”. “Muito provavelmente, essa foi uma demonstração de armas, o que poderia ser também um registo de Kobudo de Okinawa no Brasil.”

Abaixo, compartilho trecho do vídeo da live em que ele comenta sobre este registro histórico:

Graças à comunidade incrível do Karate, a seguir compartilho uma transcrição e uma tradução do texto do jornal:

 カンポ、グランデの天長節
大森州カンポ、グランデの同胞は同市日本人小學(学)校に於て日本晴の十月卅一(10/31)午後二時より天長節祝賀祭を開催せり。山城興昌 出利葉羊三 安里得良 三氏の葡語演説、撃剣 剣舞 鐵(鉄)棒 相撲 唐手 等の徐(余)興は大に人目を惹きたるものにして来賓の主なるものは市長 聯(連)隊長 警察署長 税務署長 新聞社長 裁判所判事 諸学校々長及び職員 醫(医)師 瓣(弁)護士 等にして中學(学)校々長アリンド博士起つて特に一場の祝辞を敍(述)べられたり

Kanji entre () são os equivalentes modernos.

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Celebração do Aniversário do Imperador em Campo Grande.

Os irmãos do Japão em Campo Grande celebraram o Aniversário do Imperador em um lindo dia de sol de 31 de outubro (31/10) às 14h00, na Escola Primária Japonesa. Três senhores, o Sr. Kōshō Yamashiro, o Sr. Yōzō Deriha e o Sr. Tokuyoshi Asato discursaram em português. O público foi muito entretido pela programação como Geki-ken (Kendō), Kembu (dança da espada), Barra de ferro, Sumo, Karate (Tōde), etc. Os convidados foram o prefeito, o comandante regimental, o chefe do departamento de polícia, o diretor do departamento de impostos, o presidente do jornal, o juiz, diretores e funcionários de escolas, médicos, advogados, etc. Especialmente o diretor do Ensino Médio, Dr. Arlindo, levantou-se e fez um discurso de parabéns.

Como Kobayashi Sensei diz no vídeo, é uma tarefa difícil pesquisar mais a fundo, mas certamente há mais detalhes a serem relevados. Contatar a comunidade okinawana em Campo Grande pode ser um bom caminho, mas com certeza há pistas também em vários outros locais onde os imigrantes se estabeleceram. Um exemplo disso é que, em um dos posts que fiz sobre os primeiros mestres no Brasil, uma pessoa citou que está fazendo uma pesquisa sobre a possível prática do Karate em uma colônia japonesa (koutakusseis) no Estado do Amazonas, na década de 1930 (há inclusive um relato interessante aqui). Aguardo ansioso mais informações deste estudo e ficaria feliz em repercutir. Da minha parte, pretendo continuar pesquisando sobre este e outros temas relacionados à história do Karate e escopo técnico da arte.

Quanto mais pessoas engajadas neste sentido melhor, de forma séria e colaborativa, para somar conhecimento. Essa é a forma correta de elevar a comunidade do Karate no Brasil e em outras partes do mundo: mantendo o espírito aberto para o aprendizado independentemente de graduação, sem deixar o ego interferir quando se depara com uma nova informação, sem menosprezar os esforços de outrem e compreendendo que o conhecimento está em constante construção.

Há muita coisa que ainda não sabemos. E que bom, pois podemos seguir aprendendo, nos aperfeiçoando e vibrando com novas descobertas.


* Luiz Kobayashi é doutor em engenharia pela Universidade de São Paulo e é praticante de artes tradicionais japonesas como kendô, iaidô, kenjutsu, iaijutsu, bôjutsu, kenbu e shibu. É filiado à Nihon Kobudô Shinkôkai, organização japonesa de preservação das artes marciais tradicionais do Japão. No Japão, recebeu instruções diretamente de renomados mestres das artes citadas acima. Organizou uma biblioteca pessoal com transcrições de escritos (alguns extremamente raros), estudos, compilações e discussões de especialistas japoneses sobre as artes marciais tradicionais, com ênfase para a esgrima japonesa. Atua também como pesquisador da história do kendô no Brasil, tendo textos publicados em diversas revistas especializadas, como a Kendo Nippon e a Kendo World. [fonte: Editora Estação Liberdade]